O Beijo No Asfalto

Nelson Rodrigues pode ser considerado quase um ser mítico da dramaturgia brasileira. Autor de vários clássicos como “Bonitinha mais Ordinária”, “A dama da lotação”, “Os Sete gatinhos” (todos também transportados para o cinema) e sempre conhecido por criar histórias com tragédias suburbanas. “O Beijo no Asfalto” não poderia ser diferente com elementos como morte, traição, segredos e preconceito. Todos os elementos que conduzem a trama de forma genial. Nessa versão dirigida por Murilo Benício, em sua estreia atrás das câmeras, vemos uma visão cinematográfica um pouco diferente dessa grande obra nacional.

Sinopse: “Um desconhecido é morto ao ser atropelado por um ônibus e, agonizante, pede a um bancário que lhe dê um beijo na boca. Este gesto é transformado em escândalo pela imprensa sensacionalista e o homem que cometeu o crime de beijar um agonizante passa a ser alvo de preconceito popular e também a ser investigado pela polícia, que começa a supor que o acidente tenha sido um assassinato.”

Acredito que todas as escolhas foram certas aqui, apesar de ter achado o formato um pouco estranho no início. Ao se mesclar cenas gravadas e criando quase que um making off mostrando desde bastidores de leitura do roteiro, até mostrando câmeras em frente de câmeras e transpondo do cinema para o teatro, se cria um formato de contar história que nunca tinha visto antes (ou não me lembro). Uma cena levando imediatamente a outra, pois os cenários são construídos um do lado do outro, e sem pudor isso é mostrado como se fosse algo normal. Quase uma desconstrução, como se tivesse revelando segredos que ninguém desconfiava. Achei esse tipo de narrativa simplesmente genial.

A fotografia em preto e branco remetendo a algo antigo e um linguajar um pouco vintage com palavras como “batata”, “escrachar”, “lotação” nos coloca nos anos 60. E se em pleno 2018 ainda é uma época que há preconceito em todo lugar, aqui, é muito maior causando ódio no telespectador. Algo dito por Fernanda Montenegro durante a projeção remete a isso, quando ela diz que Nelson Rodrigues trabalha com a culpa, nos fazendo sentir culpados e com nojo.

Os atores também foram escolhidos a dedo. Todos estão simplesmente perfeitos. O meu destaque de longe é Otávio Muller (Alemão) que faz o jornalista que escreve a notícia título do longa. O jeito que ele fala já da raiva e é muito natural. E lembrando que estamos falando de atores no gabarito de Débora Falabella (Lisbela e o Prisioneiro), Stênio Garcia (Eu Tu Eles), Fernanda Montenegro (Central do Brasil), Lázaro Ramos (Madame Satã) e outros mais. Inclusive minha amiga Raquel Fabbri que apesar de ter um papel pequeno ainda consegue mostrar a que veio.

Se for fã de Nelson Rodrigues o comparecimento as salas de cinema é obrigatório. E se é fã do cinema também se torna obrigatório, pois a linguagem cinematográfica usada aqui é sensacional e me impressionou mesmo. Algo que a princípio foi estranho, mas ao entender se tornou incrível. Tive até vontade de conhecer obras antigas do autor e querer conhecer mais sobre o seu fascínio com tragédias suburbanas.