Green Book: O Guia

A categoria de melhor longa-metragem do Oscar, durante bastante tempo, foi uma espécie de clube exclusivo. Apenas cinco filmes disputavam a estatueta e, com isto, não havia espaço para determinados tipos de produções. Nove anos atrás, esta história mudou. A insatisfação com a esnobada de “Batman: Cavaleiro das Trevas”, uma das melhores coisas de 2008, segundo a crítica especializada e o público em geral, gerou uma pressão para que a Academia mudasse suas regras. Desde então, até dez longas podem ser indicados por ano. Inicialmente, acreditava-se que esta mudança beneficiaria os blockbusters e as histórias de super-heróis. No entanto, não foi isto o que ocorreu. Foram os chamados feel good movies, obras que procuram transmitir uma mensagem edificante, tal como “Histórias Cruzadas” (2011) ou “Estrelas Além do Tempo” (2016), que se beneficiaram.

Dirigido por Peter Farrelly, cineasta do segundo time de Hollywood que, até agora, só chamara a atenção por realizar comédias de gosto duvidoso (O Amor é Cego, Debi & Loide e Quem Vai Ficar com Mary?), Green Book: O Guia (Green Book) fala da inusitada amizade que nasce entre um branco e um negro, nos Estados Unidos racista da década de 60. Frank “Tony Lip” Vallelonga, interpretado por Viggo Mortensen, é um ítalo-americano que vive no bairro do Bronx e trabalha no Copacabana, uma famosa casa noturna da máfia. Já Donald “Doc” Shirley (Mahershala Ali) é um pianista e compositor erudito. O encontro entre eles não se dá por acaso. Procurando por um dublê de motorista e segurança, para uma turnê de alguns meses pelo sul do país, Doc chega ao nome de Tony Lip após receber algumas recomendações. Só que este não é muito diferente de outros brancos de sua época. Em uma cena inicial, ele joga fora, no lixo de sua casa, os copos em que dois operários negros beberam água.

Detalhes. Sim, o preconceito e crenças pessoais podem ser detalhes quando o bolso aperta. Na verdade, o ítalo-americano não regateia. O que o preocupa é a chance de passar o Natal longe de casa. Por isto, pede alto e o pianista não aceita. As horas passam e Doc percebe que não vai achar ninguém melhor. Ele resolve o problema com uma ligação para Dolores (Linda Cardellini), a esposa de Tony Lip, e aceitando a pedida salarial deste. É assim que os dois homens iniciam uma pareceria que os levará por uma jornada de auto-aprendizagem pelo coração da América sulista. Forçados a conviver dentro de um carro ou dividindo mesas de restaurantes e quartos de hotéis fuleiros, estes dias juntos valerão mais do que um vida inteira morando na mesmíssima vizinhança. Aos poucos, eles descobrirão as particularidades do outro e com isto mudarão suas respectivas maneiras de ver e encarar mundo.

Apesar dos inúmeros prêmios que tem recebido, Green Book: O Guia vem enfrentando diversas polêmicas. Algum tempo atrás, Peter Farrelly foi acusado pela atriz Cameron Diaz, com quem trabalhou no passado, de assédio. Já o roteirista Nick Vallelonga (filho de Tony Lip) teve twitters seus, em que acusava os muçulmanos do estado de Nova Jersey de festejarem os ataques de 11 de setembro, redescobertos; e a família de Doc garante que os fatos reais não foram bem assim. Quanto à última alegação, dá para dizer que toda adaptação cinematográfica fantasia um pouco os fatos em prol do melhor modo de contar uma história. E o que vemos na tela é uma narrativa eficaz, funcional e divertida. Relativizar as atitudes do diretor e do escritor são outros 500. É impossível e elas são indesculpáveis Todavia, se serve de alento, possíveis preconceitos pessoais e atitudes deploráveis, de um ou do de outro, não influenciaram. A alegação de que o personagem de Ali serve apenas de escada para a redenção do seu companheiro de viagem é uma besteira, uma vez que ele também aprende algumas lições e que todos os personagens masculinos são falhos. Logo, não há distinção por cor de pele.

Com uma direção discreta, o cineasta tem como grande trunfo a interpretação de seus atores. Podendo ganhar sua segunda estatueta em dois anos, Mahershala Ali desponta como o favorito entre os coadjuvantes da temporada. Aqui, ele tem o espaço que não teve em “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016) e desenvolve seu personagem sem limitação de tempo. Assim, entrega uma figura tridimensional e rica de sutilezas. É estimulante acompanhar a transformação daquele homem sisudo, que parece realizar tudo no automático, em alguém capaz de esboçar um sorriso e externar emoções. Entretanto, o principal destaque é mesmo Viggo Mortensen. Ele faz um italiano perfeito e parece recém saído de um episódio do seriado “Família Soprano” ou de uma tomada de “Os Bons Companheiros” (1990). Todos os trejeitos e o linguajar soam autênticos. E aí é curioso descobrir que o verdadeiro Tony Lip seguiu a carreira artística e trabalhou como ator nestes dois clássicos do gangsterismo.

As escolhas narrativas de Green Book levam a caminhos óbvios e ao tal desfecho edificante. É fácil prever o final do filme e, quando este se anuncia, é impossível não nos flagrarmos torcendo para que as coisas aconteçam rapidamente. Contudo, neste momento, há uma dose de suspense aparentemente desnecessária, mas que torna tudo ainda mais prazeroso e ajuda a brotar um belo sorriso no rosto. Nada mais condizente com um autêntico feel good movie.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

Por Bruno Giacobbo (Blah Zinga)