O Decadentismo nos épicos de Visconti

Luchino Visconti di Modrone nasceu em berço esplêndido, no dia 2 de novembro de 1906. Seu pai ostentava os títulos de duque de Grazzano Visconti e de conde de Lonate Pozzolo, respectivamente, um castelo e uma pequena cidade localizados no norte da Itália. Teve uma infância luxuosa, vivida em meio aos cavalos do haras familiar, tudo proporcionado pelo dinheiro de uma grande empresa farmacêutica da qual eles eram proprietários. Apesar do fausto que o cercava, o menino que faria história como um dos maiores cineastas do Século XX, não se deixou enclausurar por esta realidade fantasiosa. Saiu de casa, serviu o exército, morou na França e se tornou comunista de carteirinha ao se filiar ao Partido Comunista Italiano (PCI). Manter a cabeça aberta lhe proporcionou a chance de confrontar visões de mundo tão distintas quanto as da nobreza e da esquerda. Acontece que esta confrontação seria mera nota de rodapé, se, de forma explicita, não tivesse influenciado alguns de seus principais filmes.

Comumente conhecido por ser, ao lado de Roberto Rosselini e Vitoria de Sica, um dos precursores do neorrealismo italiano, o “Conde Vermelho”, apelido que recebeu devido à sua origem e preferência política, também pode ser identificado como símbolo de um movimento que é mais relacionado à literatura, mas encontra guarida na Sétima Arte: o decadentismo. Tal expressão artística, entre outros aspectos, se caracteriza pelo pessimismo e o descrédito nas instituições humanas e no próprio homem, criando, como forma de escapismo, uma atmosfera propícia à devoção aos prazeres sensuais e às extravagâncias. Entres as películas do diretor que se enquadram nesta estética, estão clássicos do quilate de “O Leopardo” (1963), “Os Deuses Malditos” (1969) e “Ludwig” (1973) que, com o passar dos anos, foram elevados ao patamar quase literal (devido a longa duração dos três) de grandes obras-primas.

Ambientado durante o processo de unificação da Itália, que se concretizou em 1861, “O Leopardo” retrata, com todo o descrédito possível, a decadência da monarquia siciliana diante do poderio dos Estados do Norte sob o comando do Reino de Piemonte. O protagonista da história e referência para este período de transição é Don Fabrízio Corbera (Burt Lancaster), o Príncipe de Salina, um homem de ideais nobres, mas fisionomia melancólica. Esta melancolia, na verdade, pode ser associada a resignação frente a impossibilidade de fazer alguma coisa para impedir as mudanças em curso. Uma outra decadência é vislumbrada no horizonte: a da realeza italiana como um todo. Em uma conversa íntima, Tancredi Falconeri (Alain Delon), sobrinho do príncipe, diz ao tio que eles precisam a apoiar a unificação antes que alguém queira proclamar a república. E, de fato, em menos de 100 anos o país não teria mais um rei.

Helmult_Berger_Luchino-Visconti

Já em “Os Deuses Malditos“, a instituição humana decadente não é a monarquia e, sim, a família, célula mater da nossa sociedade. Outrora todos poderosos barões da siderurgia, donos de minas de ferro, os von Essenbeck assistem à ruína do seu império enquanto testemunham a ascensão do Nazismo. O ponto de partida é o assassinato do patriarca, o Barão Joachim (Albrecht Schoenhals). Com sua morte, os herdeiros deixam de lado qualquer cortesia e começam a digladiar pelo poder. Valores nobres, como escrúpulos e altruísmo, não valem nada. Neste momento, estar alinhado à nova ordem política alemã é o que importa. Desta forma, bons homens como Herbert Thallman (Umberto Orsini) são esmagados por gente do naipe de Sophie (Ingrid Thulin), nora do falecido nobre, e Aschenbach (Helmult Griem). No entanto, aqui, quem referencia este momento é Martin (Helmult Berger). Como neto mais velho, ele herda o controle acionário da empresa. De playboy frívolo, devoto dos prazeres sensuais com homens ou mulheres (inclusive um parente), a feroz oficial da SS, a transformação é chocante. Ele acredita que está ascendendo politicamente, porém, não percebe que está em franca decadência como homem. O que nos leva, imediatamente, ao terceiro filme.

Em “Ludwig“, o foco é a decadência do homem que batiza o filme. Rei da Baviera antes da unificação da Alemanha, ele subiu ao trono cedo, com 18 anos e muito provavelmente sem estar preparado para o fardo. Tinha boas intenções, mas não gostava tanto assim dos assuntos de Estado como a política ou as relações diplomáticas com outras potências europeias. O coração e a cabeça do monarca, em mais uma interpretação brilhante de Helmult Berger, estavam voltados para as artes. Com dinheiro tirado dos cofres públicos, financiou o compositor Richard Wagner (Trevor Howard) e construiu três palácios nababescos. Chamado de “o rei virgem”, o longa insinua que ele se dedicou aos prazeres sensuais, preferencialmente, com outros homens, embora fique claro, também, uma paixão platônica por sua prima, Elizabeth (Romy Schneider), a famosa Imperatriz Sissi da Áustria. A ruína, neste caso, foi estritamente pessoal. Ele desce ladeira abaixo até um fim trágico. Assim como ocorre em “O Leopardo“, outra decadência é vislumbrada: a da monarquia bávara em face à união alemã sob a tutela da Prússia. Contudo, ela é menos importante dentro do contexto fílmico.

Estas não são as únicas películas de Luchino Visconti que se enquadram no decadentismo. Escolhi falar delas porque são épicos grandiosos, com características parecidas, fáceis de serem correlacionadas em um texto e, intimamente, por considerá-las suas obras mais perfeitas. No entanto, poderia ter discorrido sobre “Morte em Veneza” (1971), que é baseado em um livro de Thomas Mann, outro artista afiliado a esta corrente. Se o tivesse feito, o caminho natural seria traçar um paralelo entre seu protagonista, Gustav von Aschenbach (Dick Bogarde), Martin e Ludwig. Os três são, de certo modo, individualistas e infelizes; personagens habitualmente presentes na estética em questão. Ainda: a partir deles, poderia, também, ter feito uma conexão com o próprio diretor, uma vez que todos carregam um pouco de sua genética. Herdeiro de uma família nobre, criado de maneira rígida e tradicionalíssima, Visconti se relacionou com muitas mulheres e amou outros tantos homens, incluindo, Helmult Berger, um de seus atores fetiches. Assim, confesso: preferi a via mais simples, diferentemente do cineasta que nunca fez um longa fácil. Seus filmes são complexos e maravilhosos.

Corram atrás destas obras, desliguem os celulares e excepcional diversão.