Benzinho
É a segunda vez neste 2018, ano que o cineasta Nelson Pereira dos Santos nos deixou, que uma família convencional irrompe da telona para tomar de assalto o público, em um filme brasileiro. Isto não quer dizer que as duas obras sejam iguais. Não. Fora a presença de Adriana Esteves nos dois elencos, as diferenças são grandes. Se no excepcional “Canastra Suja”, de Caio Sóh, nos deparamos com entes em pé de guerra, no agridoce Benzinho, dirigido por Gustavo Pizzi, um amor latente contagia a todos desde o comecinho. Outras diferenças ficam nítidas quando, por exemplo, comparamos as figuras paternas. Batista (Marco Ricca) e Klaus (Otávio Muller) dão duro, mas enquanto o primeiro luta contra o vício da bebida, o segundo parece ser o esteio, seguro e confiável, que qualquer clã deseja. Parece ou é? Vocês precisam ver para descobrir, até porque esta história gira em torno de outro personagem: da mãe.
Casada com Klaus, Irene (Karine Teles) é uma dona de casa que leva uma vida absolutamente ordinária, no bom sentido da palavra. De dia cuida da casa em que mora com o marido e quatro filhos, de noite cursa o supletivo para conseguir o diploma do Ensino Médio. As preocupações dela são as mesmas de qualquer mãe: se as crianças comeram, se estudaram ou se estão bem agasalhadas para não se resfriarem. Ela possui, ainda, uma outra dor de cabeça: sua irmã Sônia (Adriana Esteves), que acabou de largar um marido abusivo e por isto, junto com o filho, está morando com eles. O lugar é pequeno, mas no coração (e no lar) de uma mãe amorosa sempre cabem mais um ou dois. Acontece que este coração não estava preparado para a próxima coisa. E vejam que esta coisa, envolvendo o primogênito Fernando (Konstantinos Sarris), está longe de ser algo ruim. Muito pelo contrário.
Estrela do handebol colegial, Fernando tem o futuro pela frente e nada garante que este seja perto dos pais ou dos irmãos caçulas, Rodrigo (Luan Teles) e os gêmeos Fabiano e Mateus, vividos por Arthur e Francisco Teles Pizzi. Após um jogo decisivo em que, atuando como goleiro, levou sua escola à vitória, ele recebe uma proposta para jogar longe de casa: na Alemanha. A ida para a Europa representa muitas coisas: se tornar um atleta de elite, estudar em um colégio melhor, aprender um idioma diferente, conhecer novas culturas e evoluir como homem. Porém, representa também um afastamento daquela rotina familiar em que o tal amor latente contagia até mesmo quem está vendo o filme. E quando nos afastamos do mundo que reconhecemos como nosso, às vezes, laços são afrouxados para sempre. A partir daí a possibilidade de ver seu benzinho se afastar de vez pautará o comportamento de Irene.
Com uma história passada em Petrópolis, terra de Pizzi, a chance de que o filme tivesse uma carga autobiográfica bem nítida era grande. E teve, sim. O próprio cineasta faz questão de declarar isto quando fala sobre seu trabalho. Ex-jogador de handebol na juventude, ele deixou a família para trás quando se mudou para São Paulo sonhando ser o melhor goleiro do mundo. Um dia desistiu e foi estudar cinema. Este caráter biográfico é reforçado com a participação no projeto de alguns familiares. Junto com a protagonista e ex-esposa, Pizzi escreveu um roteiro que, em todos os momentos, expressa uma verdade ímpar. Não estamos diante de um enredo simplesmente saído da cabeça de bons escritores, estamos diante de algo crível, real, que se não aconteceu assim, bem poderia ter acontecido. O parentesco se estende também aos gêmeos, filhos do diretor com a atriz, e a Luan, sobrinho dela.
Sabendo destas particularidades envolvendo a produção fica bem mais fácil entender algumas coisas e o porquê de soarem tão reais. Não dá para saber com absoluta certeza, mas é possível imaginar que na hora de escrever o papel da personagem principal, Pizzi e Teles tenham se inspirado na mãe de um dos dois. Certo mesmo é que ela compôs uma das melhores mães da história recente do cinema brasileiro. Sua atuação é monumental, sendo quase impossível não se emocionar ou não se identificar (se você for mulher) com ela. Como não compreender e aceitar algumas de suas atitudes? Ninguém deseja ficar longe de um filho. E este tour de force dramático de Irene é magnificamente complementado pelo brilhante uso da trilha sonora. Em pelo menos três cenas, músicas ou ruídos são utilizados para sublinhar o estado emocional da protagonista e a total desconexão com a realidade palpável a sua volta.
Citar no parágrafo inicial, desta crítica, Nelson Pereira dos Santos, um dos maiores cineastas da nossa história, não foi aleatório. Na verdade, tem a ver com o fato de este ser o melhor ano do cinema nacional na última década. Em meio a obras tão plurais e distintas como dramas sociais, fantasias, musicais, enredos sobre a paranoia da violência urbana ou as consequências do uso irresponsável de novas tecnologias, Benzinho contribui para o engrandecimento desta fase com uma trama deliciosa, em que o tom agridoce vem de uma mistura azeitada de sentimentos como alegria, tristeza, esperança e desesperança. E tudo funciona nos seus mínimos detalhes, graças a condução precisa de Gustavo Pizzi. Agora, ele vê seu longa-metragem ir ao encontro do público como quem vê um filho ganhar o mundo. A diferença é que nesta “separação” não existe espaço para a tristeza, só para uma imensa alegria. Do diretor e dos espectadores.
Desliguem os celulares e excepcional diversão.
Por Bruno Giacobbo (Blah Cultural)