Ciganos da Ciambra

Candidato italiano ao Oscar 2018, Ciganos da Ciambra (La Ciambra) pode ser considerado um dos grandes injustiçados da última temporada de premiações, uma vez que, o segundo longa-metragem do ítalo-americano Jonas Carpignano, não figurou entre os nove pré-selecionados. O sentimento de injustiça vem do resultado que desabrocha, paulatinamente, ao longo das quase duas horas de projeção. Ao filmar a história de Pio (Pio Amato), um adolescente de 14 anos que vive com sua numerosa família naquilo que chamamos aqui no Brasil de cortiço ou cabeça de porco, o cineasta conseguiu, de forma curiosa, dialogar com dois filmes distantes 60 anos, um do outro, e que estão entre os mais poderosos da Itália, o país que mais venceu o prêmio da Academia de melhor filme estrangeiro. O resultado é, no mínimo, genial.

A história se desenrola toda na comuna de Gioia Tauro, Calábria, uma das regiões mais pobres da península itálica. O protagonista é um dos filhos de Rocco (Rocco Amato) e Iolanda (Iolanda Amato). Assim como alguns de seus parentes, é analfabeto e passa a impressão de que nunca frequentou uma escola. Sua única ocupação diária é seguir o irmão mais velho, Cosimo (Damiano Amato), por quem nutre verdadeira adoração. O problema é que este não é uma boa influência: ele vive do roubo de carros e outros furtos menores. Aliás, trabalhar não é o forte de nenhum dos membros da família. Todos ficam em casa e falta dinheiro. Esta situação fica patente numa cena em que a polícia dá uma incerta e Pio corre para desligar o “gato” que fornece luz para o lugar. Só que, de uma hora para outra, o garoto vai precisar amadurecer.

O amadurecimento vem com as prisões de Rocco e Cosimo. A partir desse momento, Pio se vê impingido, mesmo contra a vontade de sua mãe, a assumir o lugar do irmão e a ganhar alguma grana. Para isso, ele não só passa a cometer os mesmos crimes, como passa a se relacionar com um grupo de homens que atende pela alcunha de “italianos”. A bordo de seus carros pretos, eles chegam botando banca. São os “donos do pedaço” e, muito provavelmente, integrantes da ‘Ndrangheta, a famosa máfia calabresa. Em meio a estes novos desafios, o único que tenta fazer o menino a trilhar o caminho certo é Ayiva (Koudous Seihon), um imigrante de Burkina Faso que mora em um assentamento com outros africanos. Este relacionamento é o que o protagonista tem mais próximo de uma relação com uma figura paterna.

Produzido por Rodrigo Teixeira e Martin Scorsese, classificar este trabalho meramente como um filme de crime, apesar de ele flertar com o gênero, seria um equívoco. Na realidade, ele é muitas coisas numa só. É o testemunho do amadurecimento forçado de um adolescente sem futuro e é, também, uma obra-denúncia. Para além do luxo das passarelas de Milão, do charme de Veneza ou da beleza histórica de Roma, o sul da Itália se assemelha bastante com os países do Terceiro Mundo. E as câmeras de Carpignanofocam nesta região que costuma ser retratada justamente nos filmes de máfia. Há, ainda, um tom semidocumental, fruto da escolha do elenco. Pio, Rocco, Iolanda, Cosimo e companhia são uma família na vida real. O diretor os conheceu quando um dos Amato roubou seu carro, em 2011.

Cineasta pouco experiente, o ítalo-americano demonstrou muita segurança ao tomar algumas decisões que contaram com o apoio de uma excelente equipe técnica. No decorrer do longa, vemos uma mescla de poucos planos abertos, que destacam a pobreza local, com muitos closes que esquadrinham os não-atores. Na cena de um jantar, a câmera realiza diversos miniplanos-sequência. Estes, por sua vez, são interrompidos por cortes abruptos que ocorrem durante toda a projeção, conferindo dinamismo a uma trama naturalmente lenta. A música também marca as passagens em que a contemplação deve ser abandonada. Esta junção de talentos envolvendo o trabalho de direção, a montagem do brasileiro Affonso Gonçalves e a trilha sonora organizada por Dan Romer resulta em um belíssimo espetáculo sensorial.

Lá no início, escrevi que Jonas Carpignano fez um longa que dialoga com dois filmes poderosos. Na verdade, numa rápida olhada, sua obra evoca o neorrealismo italiano, claro, com roupagem modernosa. De qualquer forma, é difícil não perceber este parentesco quando lembramos que todos aqui são não-atores ou observamos que lança um olhar desolado para uma Itália em crise e miserável. Pio é quase um Bruno (Enzo Staiola), o pequeno coprotagonista de “Ladrões de Bicicleta” (1948), só que muito mais malicioso. E justo esta malicia, forjada num ambiente de crime e punguistas, me fez lembrar de “Gomorra” (2008), clássico recente, no caso, trocando a máfia napolitana pela calabresa. Sei que comparações são arriscadas, mas Ciganos da Ciambra é um lírico encontro entre Vittorio De Sica e Matteo Garrone.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.


Por Bruno Giacobbo (Blah Cultural)